sábado, 19 de junho de 2010

"SRI LANKA, quem sabe? Ela me diz, morena e ferina, e eu respondo por que não? Mas inabalável continua: Você pode pelo menos mandar cartões-postais de lá, para que as pessoas pensem nossa, como é que ele foi parar em Sri Lanka, que cara louco esse, hein, e morram de saudade, não é isso que te importa? uma certa saudade: em Sri Lanka, brincando de Rimbaud, que nem foi tão longe, para que todos lamentem "ai como ele era bonzinho" e nós não lhe demos a dose suficiente de atenção para que ficasse aqui entre nós, palmeiras e abacaxis. Quanto a mim, a voz rouca, fico por aqui comparecendo a atos públicos. Mas tentamos tudo. Que foi que aconteceu, eu pensava depois... Você disse, e eu acreditei, pela primeira vez na vida, eu disse, mas não sei se você acreditou. Quero dizer que sim, que acreditei, mas ela não pára de pensar nisso... mas eu não queria acreditar que fosse isso: éramos diferentes, ai como éramos diferentes, éramos melhores, éramos mais, éramos superiores, éramos escolhidos, éramos vagamente sagrados... coração, explode junto comigo, depois virava de bruços e chorava no travesseiro... Mas agora tudo bem... Não que fosse amor de menos, você dizia depois, ao contrário, era amor demais, você acreditava mesmo nisso? Não tenho nada contra qualquer coisa que soe a uma tentativa. Peço cigarro e ela me atira o maço na cara, como quem joga um tijolo, ando angustiada demais, meu amigo, palavrinha antiga essa, angústia, duas décadas de convívio cotidiano, mas ando, ando, tenho uma coisa apertada aqui no meu peito, um sufoco, uma sede, um peso, não me venha com essas história de atraiçoamos-todos-os-nossos-ideais, nunca tive droga de ideal nenhum, só queria era salvar a minha, veja só que coisa mais individualista elitista, capitalista, só queria ser feliz, cara. Podia ter dado certo entre a gente, ou não. Já li tudo, já tentei macrobiótica, psicanálise, drogas, acupuntura, suicídio, ioga, dança, natação, cooper, astrologia, patins... Sobrou só esse nó no peito, agora o que faço? (...) Faço reza, queimo incenso, tomo banho de arruda, jogo sal grosso nos cantos, não te peço solução nenhuma, você vai curtir os seus nativos de Sri Lanka depois me manda um cartão-postal contando qualquer coisa como ontem à noite, à beira do rio, deve haver um rio por lá, um rio lodoso, cheio de juncos sombrios, mas ontem na beira do rio, sem planejar nada, de repente, por acaso, encontrei um rapaz de tez azeitonada e olhos oblíquos que. Hein? claro que deve haver alguma espécie de dignidade nisso tudo, a questão é onde, não nesta cidade escura, não neste planeta podre e pobre, dentro de mim? Ora não me venhas com autoconhecimentos-redentores, já sei tudo de mim(...) Roubaram minha esperança, enquanto você, solidário e positivo, apertava meu ombro com sua mão apesar de tudo viril repetindo reage, companheira, reage, a causa precisa dessa tua cabecinha privilegiada, teu potencial criativo, tua lucidez libertária, bababá bababá. As pessoas se transformavam em cadáveres decompostos à minha frente, minha pele era triste e suja, as noites não terminavam nunca, ninguém me tocava, mas eu reagi, despirei, e cadê a causa, cadê a luta, cadê o potencial criativo?(...) Mas eu quero dizer, e ela me corta mansa, claro que você não tem culpa, coração, caímos exatamente na mesma ratoeira, a única diferença é que você pensa que pode escapar, eu quero chafurdar na dor deste ferro enfiado fundo na minha garganta seca, me passa o cigarro, não estou desesperada, não mais do que sempre estive, não estou bêbada nem louca, estou é lúcida pra caramba e sei claramente que não tenho nenhuma saída(...)
Preciso-tanto-de-uma-razão-para-viver-e-sei-que-esta-razão-só-está-dentro-de-mim-bababá-bababá, até o sol pintar atrás daqueles edifícios, não vou tomar nenhuma medida drástica, a não ser continuar, tem coisa mais destrutiva que insistir sem fé nenhuma? Passa devagar a tua mão na minha cabeça, no meu coração, eu tive tanto amor um dia, pára e pede, preciso tanto, tanto, tanto, bicho, não me permitiram, então estende os dedos e fica subitamente pequenina apertada contra o peito, perguntando se está mesmo muito feia... Então puxa e vai me empurrando para a porta, pedindo que vá, e expulsa para o corredor dizendo não esqueça então de mandar um cartão de Sri Lanka, aquele rio lodoso, aquela tez azeitonada, que aconteça alguma coisa bem bonita para você, te desejo uma fé enorme, em qualquer coisa, não importa o quê, como aquela fé que a gente teve um dia, me deseja também uma coisa bem bonita, uma coisa qualquer maravilhosa, que me faça acreditar em tudo de novo, que nos faça acreditar em todos de novo, que leve para longe da minha boca esse gosto podre de fracasso, de derrota sem nobreza, não tem jeito, companheiro, nos perdemos no meio da estrada e nunca tivemos mapa algum, ninguém dá mais carona e a noite já vem chegando (...)"

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